quinta-feira, junho 17, 2004

Tocado por Deus: Relato de Ramiro Vidal Alvarinho

TOCADO POR DEUSSempre se sinteu um gajo especial, aínda que raros eram os que partilhavam essa percepçom dele. Como muito, todo o mundo admitia que era um personagem peculiar. Era no único em que se punham de acordo os seus muitos detractores e os seus escasíssimos admiradores. Polo demais, eram muito diversas as opinions que sobre a sua pessoa circulavam. Uns opinavam que era um fulano extravagante, ainda que quiçá essa era a opiniom mais piadosa que os seus inimigos teriam emitido sobre ele. A mais extendida, e provavelmente mais realista, era a de que era um completo imbécil. Claro que isso tem pouca importância quando um está seguro de estar chamado a fazer grandes coisas. Desde menino intuiu que o seu destino era fazer algumha coisa importante. Sempre pensou que era umha chatice ter que conviver com tantas pessoas ignorantes que nom se decatavam da estrela que ele levava. Ainda que o seu consolo nom lhe era difícil de achar. Quando se lamentava, para si, porque quase nunca atopava qualquer infeliz que quisser escuitar as suas cuitas, do sofrimento que lhe infringia o facto de ter que aguentar, como o resto dos mortais, as missérias quotidianas como as aglomeraçons no autocarro, as bichas no hipermercado ou as broncas do chefe no trabalho, ao final sempre chegava à conclussom de que sem dúvida era o Altíssimo quem lhe fazia passar por aquelas provas. O Sumo Fazedor, cujos caminhos som inescrutáveis, seria quem o obrigava ao sacrifício quotidiano, para um dia fazer-lhe umha grande revelaçom. A que empurraria ao nosso heroi a fazer isso tam excepcional que a Humanidade inteira lhe teria que agradecer. Nom devia, pois, afligir-se nem queixar-se; tinha que ser paciente. Um homem curtido nos sofrimentos da vida mundana seria o que Deus desejava para esta missom, assim que devia sentir-se honrado de ser escolhido por Ele e nom pôr em causa os planos que o Senhor tinha respeito ao seu superior destino. Tinha vergonha às vezes dos pensamentos frívolos que lhe vinham à cabeça. Dezia-se a si próprio, quê impaciência tenho por saber que coisa formidável terá Deus preparada para mim. Tinha mesmo medo de que esses pensamentos foram escuitados polo Pastor e que, ofendido, Este decidisse prescindir do seu serviço. Às vezes tinha a tentaçom do martírio. A dor e a morte, para alcançar o Prémio sublime da glória, da santidade. Mortificava-o a sua existência medíocre e, ao mesmo tempo, sabia que nom podia ensaiar vias a Deus pola sua própria conta, que o justo era que fosse Deus quem chamasse a cadaquem quando correspondesse. Mas ensonhava para si outras sendas muito distintas da que fora a sua: a política, as armas, as letras ou o sacerdócio. Desde logo, qualquer delas mais recta no caminho à santidade que ser empregado de banca. Quê se podia fazer desde o escritório de umha sucursal bancária digno do mais grande dos prémios? Estava muito longe dos banqueiros da Obra, desde o seu posto de interventor. O seu pároco e confesor admirava a tenacidade da sua procura constante da perfeiçom; a sua zelosa observância dos preceitos, a sua devoçom afervoada rondando o delírio, a sua disciplina. Animava-o sempre a perseverar no estudo da Bíblia e na oraçom. Os seus companheiros de trabalho odiavam-no patologicamente. Quiçá porque lhes soliviantava nom entendê-lo. Os seus vizinhos dividiam-se entre os que se viam inspirados por um sentimento de nojo até físico e os que sentiam lástima. Apenas a sua nai pensava que tinha um filho que era um santo varom. Com cinqüenta e quatro anos sobreveu-lhe a morte, e mentres esperava numha esquina da consciência a que aparecesse o Altíssimo, compreendeu no último segundo que Deus nom assistiria à cita. Sinteu pânico mentres caia nesse furado frio e obscuro onde se afoga a memória.